Recordar mata.
Lembro-me das manhãs de Inverno, as tantas que aí passámos, o Bruno balançava-me na cama e chamava-me baixinho para que acordássemos enérgicos e fossemos tratar daquilo que achávamos poder ser o nosso futuro. Os cavalos. O Texas era sempre menos impulsivo e o Kid sempre mais... Mais como eu, digo. Lembro-me de cada aniversário, desta vez em manhãs de Verão, começávamos de cedo a procurar pelas ruas da pequena aldeia as mais belas flores, embrulhávamos caules em alumínio e esperávamos que não notasses a quantidade que gastáramos. Fazíamos os cereais para a tia e o café quente para o tio. Subíamos as escadas em caracol e corríamos para a única porta sem maçaneta por dentro, saltávamos para a cama e ali ficávamos apenas no entretém dos saltos. Lembrar-me-ei sempre do sorriso natural que recebíamos mesmo quando sabíamos que em seguida ouviríamos uma pequena palestra sobre "não apanhar flores vivas se as vamos deixar morrer", não voltaríamos de certo a fazer, dizíamos, e de facto não, pelo menos naquele ano. Sei de cor os fins-de-semana, as semanas inteiras, as férias da Páscoa e claro, não podiam de todo faltar as férias de Verão. Lembro-me da euforia das sextas-feiras, das cadeiras de transito, das grandes mochilas cheias e sempre tão aparentemente vazias e claro do saco das pantufas que só lembrávamos 2 segundos antes da hora certa. Havia sempre um certo medo que não viessem buscar-nos, que se esquecessem e por isso, decorei os vossos números de telemóvel. Números que agora já não tocam. Confesso que depois de lá estarmos, custava vir embora. Preferíamos sempre ficar. Vocês eram como um aparte da nossa realidade distorcida. Lembro-me dos penteados que me fazias sabendo que não durariam mais de 1 hora, porque eu sempre fui como o Kid. O célebre champô de maçã do qual tantas saudades guardo, tal como aquele perfume que guardavas ao canto da prateleira de vidro sobre o espelho, o tal que nunca soube dizer a que cheirava e que por isso tinha sempre um novo aroma. Lembro-me perfeitamente das poucas vezes que fomos à praia. Eu e o Bruno desejamos eternamente a compra de um carro maior, porque de facto o jipe não dava para a diversão que tínhamos disponível. Mal sabíamos que era diversão dispensável. A bola gigante que voava só de a pousarmos na calçada da Foz; as pranchas nas quais nenhum dos dois se conseguia equilibrar; as cadeiras onde não nos sentávamos; o crocodilo gigante que levava o dia todo a encher; as raquetes para o jogo onde não fazíamos mais que dois passes seguidos e por fim, as pás dos castelos que nunca conseguíamos construir como nos filmes. Não restava espaço para as lancheiras e os 2 sacos de comida que a tia sempre se encarregava de encher, quanto mais para as toalhas.. Essas acabávamos por levar embrulhadas na cintura, sempre me senti muito havaiana com ela pendurada. Lembro-me de tudo tão bem. Dos jantares em Óbidos, sem lugar marcado, sem restaurante escolhido, tudo ao acaso. Um vestido floral que eu nunca gostei de verdade e o cheiro do perfume que mais gosto, o tal que não sei a que cheira, mas que cheira deveras bem. Sempre nos olharam como uma família perfeita e foram muitas as vezes em que me questionei à cerca dessa família que nunca puderam ter. Não percebi de todo porquê, mas é uma questão que nunca ninguém saberá responder, creio que foi destino, tudo estava traçado, não foi porque não era para ser. Lembro-me ainda das idas ao supermercado, inicialmente o Bruno levava o carrinho das compras e eu sentava-me dentro dele, mas quando me tornei uma "mulherzinha" pude levá-lo por minha própria responsabilidade, recordo-me que muitas vezes foi um erro tremendo deixar-me conduzi-lo, é que... Bem, na verdade, eu sempre fui como o Kid. Adorava a ideia de te ajudar a cumprir a lista das compras e de ao passarmos pelas diversas secções, irmos construindo a próxima refeição. Há outros porquês aos quais não sei responder. Por isso, peço-te que me digas porquê. Porquê tudo se desamparou, desta forma? Porquê a única coisa que resta destas vivências é a saudade imortal? Porquê o tempo passou desta forma e te levou para parte incerta?
Recordar deixa de ser viver quando tudo o que viveste está morto. Recordar o que não posso ter de volta é matar um pedacinho de mim sem notar.
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