Ruas estreitas, corações largos.


Por estas ruas estreitas, pouco longas e por onde apenas um sentido passa, excepto quando as passamos erguidos por duas das única duas que nos fazem manter-nos de pé, diz-se que quem aqui vive, sabe exactamente o peso que isso representa. Um 'bom dia!' tem exactamente a importância que deve ter, assim como um 'obrigada!' ou um 'até amanhã!'. Não são precisas roupas luxuosas, carros que estão no topo do topo e muito menos casas incrivelmente requintadas e de certa forma, supérfluas. Cada um sabe de si, mas todos sabemos uns dos outros. Viram-me nascer e crescer, assim como eu vi tantos outros que só depois chegaram. Mas nunca, em momento algum, eu vi alguém virar-me as costas e abandonar-me, assim como se eu não fosse daqui. Eu sei onde estou e o porquê de estar aqui, o porquê de querer ficar. Não interessa quantas viagens eu faça, quantos caminhos eu percorra, quantas estradas eu desvende, porque há sempre um lugar que nunca nenhum outro saberá derrubar. Não falo do canto dos pássaros, nas nascentes que aqui se iniciam, do sol radiante que todos os dias nos ilumina e das ruas totalmente limpas, porque nada disso existe. Falo da realidade. Falo do saber e da força de ser um dos muitos filhos deste mundo. Falo da confiança que cada olhar me transmite e da disponibilidade que cada ser me oferece. Falo da alegria de cada sorriso e da sinceridade de cada elogio. Falo da mão esticada sempre que caio e do braço que me ampara sempre que esbarro. Falo da voz que sussurra um 'vai correr tudo bem!' e das vozes que fazem tudo correr bem, quando os passos caminham todos mal. Falo de tudo o que ninguém fala. Das felhoses que viajam de casa em casa e dos diversos embrulhos que aqui são distribuídos, quando chegam os pais natais às varandas mais altas e as luzes coloridas às casas mais baixas. Do bolo de bolacha que a minha mãe sempre faz, dos cusculhões do Bruno e do doce de ovos do café que em tempos se chamou 'O Ti Paulo', sendo que nessa altura, havia de facto o dito Tio. Das cores da maior árvore de natal e do musgo que o maior presépio precisa. Falo das gargalhadas dos pequenos e do quanto sabe bem ouvi-las. Falo de nós. De cada um dos desejos de quem aqui vive e do que me faz querer ficar aqui para poder cuidar de quem um dia cuidou de mim. Como disse, viram-me nascer e mais tarde crescer, viram-me sendo criança e agora mulher, no futuro, se eu puder, irão ver-me sendo o que me fizeram ser. Entrarão pela porta da minha casa, que tanto custou aos meus pais construir e comemorarão comigo o meu grau de mestre em Educação Pré-Escolar, gratificando-me por ser agora uma Educadora do único Jardim-de-Infância que por aqui pairará. Irão sorrir a ver-me com o Capelo sobre os meus longos cabelos castanhos e lembrar comigo a altura em que tanto usava os bonés. Mais tarde, com outro traje irão esperar-me ao lado de quem eu tanto espero. Com um longo vestido branco que raspa o chão da Igreja de Santa Maria, num dos muitos dias de Verão, em que o sol irá vencer as muralhas do Castelo de Óbidos, vocês lá estarão, na primeira fila, limpando os olhos que aos poucos se comovem e agradecendo a quem tanto acreditam, por terem podido assistir ao meu casamento. Anos depois, verão o Salvador e talvez também a Maria correndo pelas ruas do bairro. Mas um dia, tudo isso irá acabar, vocês irão partir para longe e eu ficarei por aqui, possivelmente com aqueles que hoje são os filhos do bairro. Tornaremo-nos duplos pais como vocês foram e caberá a nós seguir o que vocês tão cuidadosamente iniciaram. Serei eu, o Tiago, a Carolina, o Miguel, o Bruno, o Vitor, o Pedro e pouco mais. Seremos apenas nós com memórias vossas. Mas, eu prometo. Prometo que tudo o que nos ensinaram ao longo dos anos, ficará apenas aqui. Somos apenas nós, como sempre foi, porque não interessa quem por aqui passou, se essa pessoa não ficou. Possivelmente, serão poucos de vós, os que irão ver os restantes membros da minha família, o Simão, a Matilde e a Francisca, mas eu posso garantir que eles saberão o nome de todos vocês, que com os anos me ensinaram a ser coerente, segura, educada e justa. Que com os anos me ensinaram a ser menina, depois adolescente, mais tarde um jovem-mulher, depois a mulher na totalidade e mais tarde completaram-me, ensinando-me a orgulhar-vos.

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